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HUGG realiza as primeiras cirurgias de redesignação de gênero de sua históri

Hospital é um dos seis a receber credenciamento pelo Ministério da Saúde para realizar a modalidade hospitalar do processo transexualizador
HUGG realiza as primeiras cirurgias de redesignação de gênero de sua história

No mês do Orgulho LGBTQIAPN+, o Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG) se tornou parte de um marco histórico para a população trans no Rio de Janeiro.

Mantendo seu pioneirismo nos tratamentos e confirmando sua veia humanística, a unidade foi credenciada pelo Ministério da Saúde (MS) e se tornou o sexto novo centro para atuação na modalidade hospitalar de realização de cirurgias de redesignação sexual do Brasil, oferecendo um importante passo para a aceitação e o cuidado adequado a essa comunidade, que enfrenta dificuldades e preconceitos diários. Entre os dias 23 e 24 de junho, foram realizadas as primeiras três cirurgias do tipo em mulheres trans.

De acordo com o chefe da disciplina e serviço de Urologia do hospital, André Cavalcanti, o HUGG já era referenciado na cirurgia reconstrutora urogenital e, a partir do apoio da superintendência, solicitou a habilitação, junto aos órgãos responsáveis, do novo serviço que faz parte do processo transexualizador.

“Esse procedimento está inserido no âmbito do SUS, que tem uma linha de cuidado nessa área, portanto, é extremamente relevante que um hospital universitário esteja inserido, até porque faz parte da cultura dos HUs estarem envolvidos em temáticas como essa”, explicou.

O termo "transgênero" é utilizado para descrever pessoas cuja identidade de gênero difere do sexo atribuído ao nascimento. Muitos indivíduos trans sentem uma desconexão entre sua identidade de gênero e seus corpos, como se tivessem nascido no corpo errado. A partir de agosto de 2008, o Sistema Único de Saúde (SUS) estabeleceu o processo transexualizador, o qual permitiu que a população tivesse acesso a procedimentos de hormonização, cirurgias de modificação corporal e genital, bem como acompanhamento de profissionais de diversas áreas.

Em 2013, por meio da Portaria 2803/2013, o programa foi redefinido e expandido para incluir também homens trans e travestis como usuários do processo transexualizador do SUS, visto que, até então, apenas mulheres trans recebiam assistência por meio desse serviço.

O cuidado com a população trans é composto por dois elementos principais: Atenção Básica e Atenção Especializada. A Atenção Básica se refere à rede de saúde responsável pelo primeiro contato, realizando avaliações médicas e encaminhamentos para tratamentos e áreas médicas mais especializadas e personalizadas.

Já a atenção Especializada é dividida em duas modalidades: ambulatorial, que inclui acompanhamento psicoterapêutico e hormonioterapia, que dura em torno de dois anos, e hospitalar, que abrange a realização de cirurgias e o acompanhamento antes e depois dos procedimentos operatórios.

“O hospital está habilitado na modalidade hospitalar, a etapa mais avançada. Ou seja, faremos cirurgias em mulheres trans que já chegam tendo passado pelo processo hormonal, o que basicamente é fazer uma neovagina na mulher trans. Estamos montando uma estrutura com o objetivo de ser multidisciplinar. Hoje temos serviços de Urologia e Cirurgia Plástica envolvidos e queremos trazer outras áreas vinculadas no processo”, informou André.

Ainda de acordo com o especialista, um dos motivos de se ter optado apenas, pelo menos num primeiro momento, pela modalidade hospitalar é o atendimento de um gargalo cirúrgico, afinal, no país inteiro apenas seis centros são credenciados para realização desse tipo de procedimento. “Isso foi algo que fizemos na tentativa de colaborar com o SUS. Todos os pacientes chegam aqui mediante Sistema de Regulação da Prefeitura (SISREG)”, continuou.

O médico também explicou os critérios de inclusão para as pacientes atendidas no HUGG, que devem ter passado por todas as etapas anteriores do processo transexualizador em unidades credenciadas pelo Ministério da Saúde. “Caso alguma paciente esteja no início desse processo, e nos procure diretamente, será encaminhada de volta ao posto de saúde com uma guia de referência e contrarreferência. Isso visa proteger o hospital, uma vez que a prescrição de hormônios faz parte da esfera da Atenção Básica à Saúde”, disse.

Cirurgias

Os três casos iniciais de redesignação sexual foram realizados nos dias 23 e 24 de junho, com as pacientes ficando internadas, no total, por cerca de cinco dias até a alta. As cirurgias em si tiveram duração de três a quatro horas e foram coordenadas pela equipe de Urologia, na figura de André Cavalcanti, e contaram com a participação de equipes de Cirurgia Plástica. Além disso, o hospital convidou um especialista estrangeiro para auxiliar no desenvolvimento dos casos, oferecendo sua experiência em uma fase inicial, por meio de uma proctoria. A ideia é utilizar esse apoio médico nos dez primeiros casos.

Segundo Cavalcanti, a intenção é ampliar o atendimento para outros lugares do país, desde que cheguem pelo sistema de referência. “Na verdade, nosso objetivo é nos tornarmos uma referência nacional. Ajudando na formação de novos médicos, trabalhando em equipes multidisciplinares. Queremos criar aqui um modelo de atendimento que, talvez, no futuro, possamos replicar em outros centros”, informou.

Outro ponto levantado pelo urologista foi sobre a importância do credenciamento, que possui um rito organizado, com fluxos definidos e permite receber verbas adequadas do MS para esses procedimentos específicos. E, nem mesmo a demora na obtenção da certificação, ocasionada pela pandemia de Covid-19, foi capaz de tirar o valor dessa conquista.

“A importância é que estamos inseridos num processo que é uma demanda social e existem pacientes que sofrem de disforia de gênero ( presente quando há uma dissonância aflitiva entre o sexo biológico da pessoa e o papel social do gênero a ele associado, conforme atribuído no nascimento, e o senso da pessoa de seu próprio gênero), que é considerado um problema médico. Temos de considerar que essa população merece os mesmos cuidados de cidadão como qualquer um, qualquer brasileiro”, finalizou.

História de luta, história de glória

Um oásis no deserto. Assim, Kathyla Katheryne Valverde, 56, professora de Pedagogia, pelo Cederj, musicista, mulher transexual, ativista dos Direitos Humanos, transfeminista, doutoranda em Música pela UNIRIO, define a importância da disponibilidade pelo SUS do processo transexualizador. “Eu vivia dentro da caverna de mim mesma. Sabia que o suicídio não era uma alternativa, pois sou de família cristã e sei que não tem salvação. Senão teria me matado. Era uma pessoa muito triste e amarga. E, dentro da seara da transexualidade, eu me olhava no espelho e ficava amargurada. Via meu semblante, meu corpo e achava aquilo horrível.”, falou, demonstrando o sofrimento vivido por pessoas com a mesma condição.

Antes de passar pela redesignação de gênero, Kathyla tentou buscar, no reconhecimento musical, uma projeção artística que conseguisse dar suporte para “sair do armário” e receber apoio da sociedade. “Graças a Deus, o meu talento me permitiu estar num nível bastante acima da média do que era praticado aqui. Conseguia tocar o que estava sendo feito lá fora, mas não conhecia ninguém, morava no subúrbio e as dificuldades eram grandes”.

O tempo foi passando e a busca pela autoafirmação não permitiu, inicialmente, concretizar seus planos. “A Laerte (cartunista) é um exemplo para mim do que queria fazer. Viveu dentro de uma caixa para se preparar”, continuou.

A tristeza causada pela disforia de gênero foi se agravando, até que um dia, enquanto visitava um sebo de uma amiga, encontrou uma entrevista sobre uma cantora trans alemã que havia passado pelo processo transexualizador. “Não sabia que o programa existia. Estava com medo e pesquisei no mundo as técnicas das referências na área. Perguntei ao meu médico e ele me indicou tratamento num centro especializado, onde fiquei por seis meses”. Após esse período, Katheryne foi encaminhada para o Hospital Universitário Pedro Ernesto (único outro centro credenciado do Rio de Janeiro para fazer a modalidade hospitalar do processo transexualizador).

Kathyla foi a primeira mulher trans do RJ a fazer toda documentação social sem ter passado pelo processo transexualizador. Em 2016, finalmente, conseguiu realizar a cirurgia de redesignação sexual, mas as dificuldades encontradas pelo caminho não a impediram de pensar em outras pessoas que passam pelo mesmo problema. “O desespero é tão grande que aqui no Brasil muitas se sujeitam a participar de qualquer coisa para alterar a anatomia. Tudo para acabar com o sofrimento. Fiz parte da câmara técnica de saúde LGBT, que se tornou conselho. Graças a Deus, pude dar muitas contribuições para o movimento social”, informou.

E a resiliência, característica da musicista, foi sendo posta à prova diante de cada novo obstáculo. “A vida é cíclica, é fase. Eu sei do que faço da minha vida. Eu não dou a ela o tipo de protagonismo que preconceituosos esperam. Sempre confiei no meu talento. A resposta que dei para a sociedade foi por meio dos estudos.”

Atualmente, Kathyla se encontra feliz e realizada ao se olhar no espelho. “Me sinto como aquelas grades antigas que foram recebendo diversas camadas de tinta. Me sinto como se fosse esse portão pintado ao longo dos anos pela sociedade. E cada pintura era uma delimitação para me enquadrar. Busquei a minha tinta original, enquanto raspava as tintas do preconceito”.

Katheryne também está orgulhosa por estudar numa instituição que está abrindo as portas para que mais mulheres trans encontrem sua pintura original, especialmente por se tratar, simbolicamente, do mês do Orgulho LGBTQIAP+, que para ela é uma das maneiras corretas de incentivar as pessoas a manterem suas esperanças, estimulando o coletivo e mostrando suas existências que vêm desde o início da humanidade. “O HUGG sempre foi pioneiro, desde o tratamento do HIV, e estou muito contente com isso. A UNIRIO, para mim, é uma instituição muito especial, diferenciada em todos os sentidos. Estamos quebrando um paradigma. Temos excelência e referência, com as melhores práticas”, concluiu.

Sobre a Rede Ebserh

O HUGG/UNIRIO faz parte da Rede Ebserh desde dezembro de 2015. Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 41 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do SUS ao mesmo tempo em que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação. (Por Felipe Monteiro, da Unidade de Reportagem da Ebserh)

HUGG realiza primeiras cirurgias de resignação de gênero

À esquerda, a equipe que atuou nas cirurgias; à direita, a paciente Kathyla Katheryne (Fotos: Unidade de Reportagem da Ebserh)