Professor da UNIRIO investiga conexões globais da cidade de Salvador no período colonial
Idade Moderna, séculos XVI a XVIII. No continente americano, uma cidade funcionava como centro mercantil global, exercendo papel de destaque na ampla rede de conexões sociais e econômicas entre Europa Ocidental, África Subsaariana e Oceano Índico. Agricultores locais exportavam sua produção para uma grande diversidade de regiões, da América do Norte até o extremo Oriente, e embarcações vindas de terras longínquas atracavam por lá para reparos, antes de seguirem viagem.
A cidade era Salvador, fundada em 29 de março de 1549 como capital do Estado do Brasil. Compreender seu papel no mundo daquela época é o desafio da pesquisa Conexões Globais de uma Capital Colonial: comércio, escravidão e poder em Salvador (1549-1763). O projeto é coordenado pelo professor da Escola de História da UNIRIO Thiago Krause, em parceria com o historiador Christopher Ebert, do Brooklyn College/City University of New York, nos Estados Unidos.
“Salvador foi a maior cidade do litoral Atlântico nas Américas até o final do século XVIII”, destaca Krause. O professor ressalta que, para os padrões da época, a capital brasileira era um polo mercantil pujante e até sofisticado, constituindo-se na segunda maior cidade do Império Português, atrás apenas de Lisboa, a partir do final do Seiscentos. Para ele, as múltiplas conexões comerciais evidenciam que o território brasileiro não era apenas “um grande canavial”, como muitos ainda pensam.
A revelação contrasta com a imagem predominante do Brasil Colonial, geralmente caracterizado como território isolado, cuja única função econômica era suprir Portugal. Nas últimas décadas, a historiografia avançou ao constatar também a centralidade da relação com a África, mas, segundo o professor, as conexões diretas e indiretas estabelecidas por Salvador iam muito além desses espaços, como é possível perceber ao se investigar a documentação depositada em outros países e produzida em outras línguas.
Krause pretende salientar as interconexões comerciais que cruzavam o mundo atlântico à época, “evidenciando a impossibilidade de recortá-lo simplisticamente em esferas imperiais de influência”. A empreitada, inédita na historiografia brasileira, envolve vasta pesquisa documental em 34 arquivos espalhados por 22 cidades, dez países e quatro continentes, com fontes em sete idiomas.
Exportação
O açúcar era o mais notável produto baiano, mas a pesquisa se volta para outros dois artigos: ouro e tabaco. No caso do ouro, Salvador dividia com a cidade do Rio de Janeiro o escoamento do metal extraído na Colônia. Já o tabaco brasileiro era considerado de alta qualidade: de acordo com Krause, mesmo as folhas tidas como “inferiores” eram apreciadas, devido à técnica de produção utilizada, que envolvia a cobertura com melado de cana antes da secagem, resultando em um produto com paladar mais doce.
O transporte era feito em navios negreiros que partiam com destino à África Ocidental, onde se fazia comércio com ingleses, franceses, holandeses e, até mesmo, brandemburgueses (alemães) e dinamarqueses. Após a venda dos produtos, as embarcações retornavam à cidade trazendo negros. Segundo o pesquisador, a “Capital da Alegria” detém o triste título de cidade que mais recebeu africanos escravizados nas Américas até meados do século XVIII, quando foi ultrapassada pelo Rio de Janeiro.
Devido à sua localização estratégica, a cidade também se tornaria uma espécie de “porto de reparos”, prestando serviços para navios vindos da África e da Ásia que faziam paradas por lá. Chegavam embarcações de Macau, na China, de Goa, na Índia, e de muitos outros portos, portugueses ou não.
Colônias
Havia também trocas comerciais com outras colônias na América do Sul. Segundo Krause, Salvador vendia para Buenos Aires, na atual Argentina, indivíduos escravizados considerados “ruins” para o trabalho – muitos deles ainda na infância e, por vezes, doentes. Como pagamento, recebia-se prata proveniente de Potosí, na Bolívia, levada para a Argentina para comprar os africanos comercializados na região. “A prata que circulava em Salvador vinha do contrabando com Buenos Aires”, salienta.
A pesquisa já deu origem ao artigo Dutch’s Republic Brazil Trade after 1654 (O Comércio da República Holandesa com o Brasil após 1654), a ser publicado como capítulo da obra Pursuing Empire, organizada pela professora Cátia Antunes, com lançamento previsto para este mês pela editora Brill. Atualmente, o professor está em viagem à Espanha, onde passará cinco semanas investigando o contrabando com Buenos Aires e o comércio de tabaco baiano – um dos mais consumidos no país europeu naquela época.
O objetivo é publicar um livro, em inglês e português, sobre as relações comerciais de Salvador no período colonial. A partir do segundo semestre, Krause dará início a seu estágio pós-doutoral no Instituto de Estudos Avançados de Princeton (Estados Unidos). O período, que se estenderá até 2023, será dedicado à escrita do trabalho. O projeto tem financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), da Fundação Carolina, da Espanha, e da Tow Foundation, dos Estados Unidos.
(Gabriella Praça/UNIRIO)