Tópicos Especiais II - Colonialidade, Pedagogia Decolonial e Música
EMENTA:
Os debates recentes na área de educação musical a tem aproximado de questões etnomusicológicas. Uma dessas questões diz respeito à necessidade de realização de um giro decolonial, ou seja, de um rompimento com a colonialidade, que segundo Maldonado-Torres (2007), consiste na hegemonia de conhecimentos, saberes, comportamentos, valores e modos de ser e atuar de determinadas sociedades que, se impondo a outras, exercem um profundo poder de dominação cultural. Quijano (2007) acrescenta que seria necessário realizar uma descolonização epistemológica para em seguida ser possível estabelecer uma comunicação intercultural, um intercâmbio de experiências e de significações e parte de uma análise histórica e sociológica profunda dos processos iniciados com a comquista das Américas pelos europeus para explicar como se organizou o colonialismo e depois as colonialidades do ser, do poder e do saber.
Portanto, esse curso terá como objeto inicial a realização de estudos e reflexões acerca da teoria desenvolvida pelo coletivo Modernidade/Colonialidade, que congrega diversos cientistas sociais, filósofos, semiólogos e críticos literários latino-americanos, tais como Walter Mignolo, Anibal Quijano, Nelson Maldonado-Torres, Enrique Dussel, Juan D. Gomes-Quintero e outros. Este grupo gerou um importante repertório de categorias de análise para se pensar criticamente a realidade latino-americana contemporânea, na medida em que colocou em evidência o lado obscuro da modernidade: a colonialidade, que até hoje está presente notadamente no racismo estrutural, no eurocentrismo epistêmico e cultural, bem como nos processos de ocidentalização dos estilos de vida e modos de ser que afetam as populações indígenas e afro-descendentes nas Américas, assim como outros povos subalternizados em todo o planeta. Assim, textos selecionados desses autores serão discutidos de modo a se analisar como se deu o processo histórico que possibilitou que a colonialidade tivesse permanecido na América Latina sobretudo, mesmo após a independência política dos países da região, ao contrário do processo ocorrido na Índia, vista como um contraponto, onde o enfrentamento à ocidentalização na arena cultural antecedeu a independência (Chatterjee,1993 ; Wolff, 2014 ).
Consideramos que a experiência da expansão e colonização europeia seja essencial para se entender o surgimento das principais instituições modernas entre os séculos XVI e XIX na região: instituições científicas e artísticas oficiais como as escolas e universidades, além do aparelho burocrático estatal, todas moldadas a partir da visão de mundo e dos interesses do colonizador e de elites identificadas com sua visão de mundo. Do mesmo modo, em fase posterior, todos os processos de modernização implementados nas antigas áreas coloniais – não apenas dos espaços urbanos, mas também estéticos e artísticos e musicais - foram mediados pela “lógica cultural” da colonialidade, que muitas vezes incorporou o “outro”, seja o nativo, seja o afro-americano, reservando-lhe apenas um lugar de subalternidade e mantendo a lógica da dependência cultural (Sevcenko, 1983; Maldonado-Torres, 2007).
A partir do estudo dos conceitos elaborados pelo coletivo de intelectuais latino-americanos conhecido como grupo modernidade/colonialidade (que reuniu Walter Mignolo, Enrique Dussel, A. Quijano, C. Walsh e outros), esperamos fornecer subsídios para uma compreensão mais ampla desse processo que implicou em epistemícídios, racialização e em genocídios de populações que continuam a ocorrer na atualidade.
Esse curso visa também abordar o debate sobre a necessidade de realização de um giro decolonial que implique não apenas na resistência, como também na reinvenção do viver e do existir a partir das práticas libertadoras e insurgentes, inclusive no campo do ensino superior de música no Brasil. Tomando-se como ponto de partida a pesquisa de Luiz Ricardo Queiroz (2017) acerca da trajetória histórica colonial de institucionalização do ensino musical e de como ainda está presente na educação musical superior brasileira, pretende-se refletir em conjunto sobre a necessidade, apontada pelo autor, de superação dos epistemicídios dos outros saberes e a abertura à diversidade e à consideração das necessidades e demandas sociais, o que traz consigo a necessidade de contextualização dos currículos de música no país, bem como uma humanização do ensino universitário no sentido que Paulo Freire dá ao termo (Freire, 1977).
A análise de Euridiana Silva Souza (2019) dos currículos dos bacharelados em música de instituições localizadas na região sudeste do Brasil será utilizada como fonte para uma melhor compreensão do contexto atual do ensino de música nos IES da região, propiciando elementos para uma discussão acerca das concepções de música vigentes e dos processos de ensino mais comuns nessas instituições. A proposta de uma educação decolonial elaborada por Caherine Walsh (WALSH, 2013) no Programa de Estudos Culturais da Universidade Simon Bolivar, ainda que não esteja focada no ensino de artes, será estudado de modo a se estabelecer um contraponto às práticas predominantes nas universidades brasileiras, de modo a propiciar a formulação de novas ideias e práticas pedagógicas mais abertas à diversidade cultural e ao entrelaçamento entre o político – pensado pela autora em teros amplos em sua ligação com os movimentos sociais - e uma pedagogia da libertação humana.
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